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Nossa embaixatriz: notas sobre a atuação diplomática
Após conversar com nossos colegas do Viva Rio, diante da chegada de novos quadros desta organização em Porto Príncipe e em função de uma situação volátil, que muda a cada instante do que diz respeito ao acesso à água e comida, optamos por pedir abrigo à embaixada do Brasil. Diga-se de passagem, há dias amigos e parentes do Brasil insistem em que deveríamos recorrer à embaixada. Afinal, somos um grupo de brasileiros que viu seu trabalho no Haiti interrompido pela violência do terremoto, e estamos na expectativa do que fazer: ficamos e ajudamos? Podemos ajudar? Ou devemos partir para o Brasil em meio uma situação incerta e que se agrava todos os dias? E se decidimos partir, como partir? Seguindo a orientação de nossos colegas do Viva Rio, nos preparamos para seguir para a embaixada hoje pela manhã. Acordamos às 6 da manhã, após mais uma noite dormindo no jardim, e nos preparamos para esperar o veículo que viria nos buscar.
Ela irrompeu o portão do Viva Rio por volta das 8:30 da manhã e pediu que nos chamassem. Trazia um vestido curto algo entre o roxo e o verde, quase um furta cor, apresentava uma expressão rígida e abatida. Na certa estava tocada pelos últimos eventos. Os cabelos devidamente penteados pra trás, uma maquiagem excessiva e um colar de ouro ostensivo. Enquanto permanecíamos na sombra, ela se manteve no sol. Aos poucos, enquanto sua proeminente testa e suas bochechas se enchiam de suor, ela discorreu sobre grandes temas, aliando ciência, religião e política de maneira única. Em poucos minutos, a embaixatriz do Brasil no Haiti explicou por que um rabino, as placas tectônicas, seu marido, os mortos e o Brasil eram interdependentes.
Ela não nos perguntou nada. Não sabia quem éramos, ou o que fazíamos aqui. Quando soube que de um grupo da Unicamp se tratava, não titubeou: “A EMBAIXADA NÃO TEM NENHUM COMPROMISSO COM A UNICAMP. O EMBAIXADOR PROIBIU QUE FOSSEM HOSPEDADOS EM NOSSAS DEPENDÊNCIAS. ELE É O EMBAIXADOR, ELE MANDA; SE HOSPEDAMOS VOCÊS TEMOS QUE HOSPEDAR TODOS”.
E seguiu, com pérolas: “A EMBAIXADA NÃO VAI EVACUAR NINGUÉM PORQUE EU NÃO VOU SAIR DAQUI. VOCÊS DEVEM VOLTAR PARA O BRASIL COMO VIERAM. VOCÊS SABEM ONDE FICA O AEROPORTO, COMPREM PASSAGEM; VOCÊS SABEM ONDE FICA A RODOVIÁRIA, DE LÁ SAEM ÔNIBUS PARA A REPÚBLICA DOMINICANA”. E prosseguiu com a máxima: “NÃO TEMOS NENHUMA RESPONSABILIDADE SOBRE VOCÊS. VOCÊS ESTAVAM NO LUGAR ERRADO NA HORA ERRADA, SINTO MUITO”.
Poderíamos reproduzir detalhes de suas observações sobre a situação atual do Haiti ou sobre a política haitiana. Não o fazemos porque, com franqueza, sentimos vergonha alheia. Seu auto-centramento e sua falta de sensibilidade quanto aos impasses vividos pelos haitianos não fizeram nada além de nos constranger: ela pode ocupar a posição que ocupa?
Nos restringiremos àqueles elementos que nos afetam diretamente: pode uma embaixatriz simplesmente dizer “VOCÊS ESTÃO PROIBIDOS DE SE HOSPEDAR NA EMBAIXADA”? Ela não nos perguntou nada, não sabe da nossa situação, nada. Suponhamos que tivéssemos passagens de avião saindo de Porto Príncipe. Como chegar ao aeroporto? Não há transporte, não há combustível. Porto Príncipe é uma cidade grande e destruída. A “rodoviária”, na verdade, não existe, é a garagem da Caribe Tours, de onde saem os ônibus diários para Santo Domingo, e fica em Pétionville. Como chegar a Pétionville? Há lugares no ônibus? Os telefones estão colapsados. Pode o Brasil ter como representante neste país alguém que manifesta tamanho descaso por seus concidadãos abdicando das obrigações mínimas de uma embaixada em qualquer lugar do mundo? O que o Haiti pode esperar de embaixador e embaixatriz que atuam desta maneira? O que aconteceu conosco não tem a menor importância. Só é revelador do lugar que o Haiti parece realmente ocupar no universo de nossas relações internacionais.
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Não tenho procuração do Itamaraty pra defender ninguém de lá, é claro. Só acho que os xingamentos generalizados que vi nos comentários são um pouco injustos. Botei lá o seguinte comentário, que ainda aguarda moderação:O nome dela é Roseana Teresa Aben-Athar. Foi ela que achou o corpo de Zilda Arns nos escombros da igreja, segundo os jornais. Deve estar em choque ou estressada por tudo o que viu, pelas inúmeras solicitações, pela impotência, quem há de saber? Acho que ninguém está agindo racionalmente ou seguindo protocolos aí no Haiti. Um quartel brasileiro que ficou de pé está hospedando todos os repórteres que chegaram do Brasil. Mas escoltar a Globo, convenhamos… A não ser que toda a imprensa esteja sendo escoltada, o que nem seria absurdo, já que para fazer a cobertura a imprensa precisa mesmo de segurança. Enfim, difícil situação.
Este trecho sobre soldados brasileiros escoltando a Globo se deveu a um longo comentário de um cidadão, e destaco a parte que diz o seguinte:
Ontem, desde o início da tarde, a Globo fazia chamadas para uma matéria onde a correspondente Lilian Teles teria acompanhado o resgate de uma mulher soterrada em Porto Príncipe. A reportagem começa com Lílian “desfilando” por Porto Príncipe com carros da Onu acompanhada de soldados brasileiros, todos com fuzil na mão apontando para o povo. A velocidade do carro quase põe abaixo o “furo jornalístico”. Alguém corre atrás do carro pedindo ajuda. Lílian pede que parem o carro, única razão para o automóvel realmente parar. Os soldados, todos armados, vão até os escombros e constatam o que os haitianos que ali estavam já sabiam: havia alguém vivo ali. Os soldados não largam os fuzis nem mesmo para pegar na mão da mulher, uma enfermeira soterrada sob aquilo que fora um hospital. Eles não têm pás ou outros equipamentos, mas continuam a segurar os fuzis e a empurrar os haitianos que lá estão para que as câmeras da Globo continuem a registrar a “emoção” da repórter e a “solidariedade” do soldado brasileiro. Há um corte na reportagem e logo em seguida se veem bombeiros, sabe-se lá de onde, pois a matéria não fala, retirando os escombros. A mulher já aparece com o corpo semissoterrado. Novo corte: Lílian já está na base brasileira, longe dos escombros e explica que não pôde ficar até o fim do resgate, pois não daria tempo de voltar antes de escurecer. Antes anuncia que o circo deve continuar, pois a mulher foi trazida para a base brasileira e lá a repórter irá procurá-la para um “emocionante encontro”.Eu vi essa reportagem na Globonews, mas a fala da repórter era tão insuportavelmente sensacionalista – uma gralha histérica -- que tirei o som e só fiquei vendo as imagens.
Mas, antes de tirar o som, ouvi algumas coisas: primeiro, de fato, uma voz impositiva de mulher ordenou “pare o carro”. Não sabia até agora, mas era a tal repórter dando ordens ao soldado-motorista!
Em seguida, percebi que o soldado que foi socorrer falava em inglês com a vítima – are you ok? -- e em francês com os populares em volta. “Fermez la bouche, s’il vous plaît”, dizia, pedindo silêncio para poder escutar alguma resposta. Achei aquilo estranho, dizer ao povo que queria ajudar para “fechar a boca” era grosseria... Até imaginei que, nervoso, ele quis na verdade se dirigir à moça soterrada para que mantivesse a boca fechada... A própria gralha não parava de falar, insuportável! Mas concluí que o gajo era decididamente estúpido quando ele se dirigiu à repórter, e não aos populares que haviam pedido socorro, para dizer que “sim, tem uma mulher viva aqui, ela tá bem”... Era apenas mais um fãzoca idiota da Globo. A gralha desandou a falar e tirei o som.
Por fim, se a ONU está dando segurança a toda a mídia, tudo bem. Se é apenas à Globo... esse é o escândalo do ano.
4 comentários:
Parabéns! Vc furou o Globosta, e ainda forneceu uma fonte para elas: o blog do Unicamp.
Mas eles não publicaram meu comentário, sniff...
Vc viu mestre Zu elogiando a cobertura da Moça? Tá caducando.
Ainda bem que nao vi...
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