quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

O discurso foi bom mesmo?

Fotos da posse: Marcello Casal Jr/ABr
O ministro @Paulo_Bernardo brincou no Twitter com os 140 zilhões de toques do discurso de @padilhando em sua posse no Ministério da Saúde. Exagerou. Alexandre Padilha falou apenas 53.952 caracteres - com espaços! :-) Um longo discurso, é verdade. Para alguns, muito bom; para outros, uma “montanha russa de altos e baixos”, como se vê no blog Saúde com Dilma. O jovem e simpático ministro tuiteiro deu alguns golpes em certos temas caros aos defensores do SUS e da Reforma Sanitária (talvez devesse ter lido um discurso formal nessa estreia: no improviso informal fala-se alguma coisa impensadamente).

Cheia de esperança com esse ministro infectologista e “suseiro” de formação, vou me atrever a “traduzir” alguns trechos para quem não conhece bem a saúde pública e comentar outros à luz de princípios e diretrizes do SUS, o nosso Sistema Único de Saúde, um dos mais importantes resultados da Constituição Federal de 1988. A mesma que definiu: “Saúde é direito de todos e dever do Estado”.

Por sinal, @padilhando trocou a foto do avatar. Agora usa uma da posse, em que a marca do SUS tem grande destaque!

Paralelamente, cumprimentos aos funcionários da assessoria de comunicação do Ministério da Saúde: trabalharam desde o fim da cerimônia de posse, depois das 19h, até tarde da noite para que fosse possível a publicação, às 23h16 do próprio dia 3, da íntegra do discurso. Tarefa hercúlea: só na análise levei três dias. Valeu!

Meus modestos comentários estão nos trechos em azul.

***

Boa tarde a todos, boa tarde a todas.

Já começou respeitando a língua do P.C. (linguagem politicamente correta)!
 
E pelo visto eles vão ter que se acostumar com o ministro twitteiro, que se utiliza das redes sociais, que acha que esse é um instrumento importante de comunicação, de escuta e diálogo com a sociedade.

Sou fã do ministro tuiteiro, mas vou ficar mais feliz se ele mantiver diálogo permanente com as conferências de saúde, o Conselho Nacional de Saúde, a “rede” em geral do controle social, que andou um tanto abandonada pelo ministro Temporão.

(...) Seria muito mais difícil assumir o Ministério da Saúde do Brasil, Temporão, se não fosse suceder esta geração de ministros que ao longo desses oito anos construíram um conjunto de avanços no SUS. Eu quero, em nome do Temporão, saudar aqui o nosso primeiro ministro do governo do presidente Lula, Humberto Costa, hoje senador da República pelo estado de Pernambuco. Daqui a pouco ele vai fazer a trajetória do Giovanni Berlinguer na Saúde, viu? Se preparem aí.

O italiano Giovanni Berlinguer, que muitos consideram o “pai da Reforma Sanitária brasileira”, é sanitarista, bioeticista, professor de Medicina Social. Hoje com 86 anos, foi eleito várias vezes deputado e senador pelo Partido Comunista Italiano e integra desde 2004 o Parlamento Europeu como representante dos Democratici di Sinistra (DS), os democratas de esquerda. Um de seus maiores feitos políticos, a aprovação em maio de 1978 da Lei do Aborto, da qual foi relator, chamou atenção da imprensa mundial “pela autoridade moral, competência e habilidade com que conduziu o processo” num país católico como a Itália, nas palavras do bioeticista Volnei Garrafa. Visitou o Brasil pela primeira vez em 1951 ainda como líder estudantil -- Carlos Lacerda logo propôs a expulsão deste perigoso “espião russo”. Nos anos da ditadura, “seus livros eram lidos às escondidas, passando cuidadosamente de mão em mão. Mais recentemente, no início dos anos 90, mudou-se com armas e bagagens do campo da Saúde Pública para a Bioética, sem deixar de manter os olhos voltados para as questões ideológicas, sanitárias e coletivas que nortearam toda sua longa vida pública”, diz Volnei.

Queria saudar o ex-ministro Saraiva Felipe, nosso deputado federal pelo estado de Minas Gerais. Como eles dizem em Minas, “o majoritário” na região de Montes Claros, Norte de Minas, não é, Saraiva? Montes Claros formou não só uma grande geração de sanitaristas, mas de quadros políticos que ajudam a bem administrar a maquina pública naquela região.

O Projeto Montes Claros é considerado fundador do Movimento Sanitário no Brasil. Iniciado em plena ditadura – 1974 -- criou, além de ampla rede pública de serviços, o pensamento contra-hegemônico que moldou a formação em geral crítica dos sanitaristas (de esquerda, apartidários ou até conservadores, os sanitaristas brasileiros defendem em bloco as bandeiras da Reforma Sanitária). Era uma região dominada por oligarquias políticas, sem organizações populares, e coube aos profissionais de saúde construir do nada a participação comunitária. Em 1985, secretários de Saúde reunidos lançaram a Carta de Montes Claros, intitulada “Muda Saúde”, que estabeleceu o marco referencial do então novo movimento municipalista da saúde.

(...) Queria saudar o ex-ministro e atual diretor da Anvisa, que estava lá fora, Agenor [o farmacêutico Agenor Álvares] (...) E o querido amigo Temporão, que além de desempenhar um grande trabalho nesses quatro anos, ele sabe que eu torci muito para que ele batesse o recorde de ministro com mais tempo no Ministério da Saúde. Eu sempre falava pro Temporão: vai bater o recorde...

E bateu: José Gomes Temporão assumiu em 16/3/07 e saiu em 1º/1/2010 (quase 3 anos). Humberto Costa (1º/1/03 a 8/7/05), o primeiro ministro da Saúde de Lula, ficou 2 anos e 6 meses. José Saraiva Felipe (8/7/05 a 31/3/06), 8 meses, e Agenor Álvares (31/3/06 a 16/3/07) quase completou um ano.

(...) Quero convencer a todos os gestores, em todos os níveis da Federação, no campo da saúde que estejam absolutamente envolvidos e integrados à grande meta de erradicar a miséria no país, estabelecida pela presidenta Dilma Rousseff.

Esse trecho faz lembrar a excelente fala de despedida do ministro Temporão, que citou os Determinantes Sociais da Saúde. “Para nós, militantes da Reforma Sanitária Brasileira, a saúde é socialmente determinada. Por isso um componente central na busca de melhores condições de saúde se dá através de políticas voltadas para a redução das desigualdades, das iniquidades, da miséria, do preconceito, da ampliação da democracia e da luta incessante pela justiça social”, disse Temporão. (Saiba mais sobre os DSS aqui e aqui.)

(...) Então, eu quero agradecer a todos os parlamentares, senadores, deputados, os membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, governadores e prefeitos porque essa convivência com todos eles me fez ver as duas coisas sempre, o que eu acho que é fundamental para qualquer gestor público. Não perder a importância, a dimensão e a dedicação em relação ao esforço técnico, ao aprendizado, a buscar se aprofundar sobre os vários temas que conduz, mas também não perder a dimensão da política. Não se fazem mudanças, sobretudo as mudanças na Saúde que a população espera, sem construir maiorias legislativas, políticas, sociais, econômicas para consolidá-las. Foi assim quando nós criamos o SUS. Se não se constrói maioria política, parceria com governadores e com prefeitos, que são os eleitos pelo povo, com os deputados e senadores, as mudanças não acontecem. Então eu quero dizer aos deputados, senadores, governadores e prefeitos que terão aqui um ministro técnico, mas um ministro político no sentido de construir as mudanças necessárias para a Saúde do país.

Achei esse trecho importantíssimo. A consolidação do SUS vai precisar muito do Congresso. As mudanças implicam posições político-ideológicas muito firmes. A maioria, de esquerda...

Quero saudar, em nome do Volmir, todos os conselheiros, não só do Conselho Nacional de Saúde, como também todos os conselheiros que participam dos conselhos estaduais, conselhos municipais e quero firmar aqui com você, Wolmir, e com todo o conselho nacional, um compromisso: quero estar presente a todas as reuniões do Conselho Nacional de Saúde como ministro da Saúde.

Este “Volmir” é Volmir Raimondi, conselheiro representante da UBC (União Brasileira de Cegos). Achei curioso, o Francisco Batista Jr., presidente do CNS, não estava na posse? Por sinal, no site do Cebes artigo do conselheiro Alcides S. de Miranda comenta impasse instalado em dezembro no processo eleitoral do conselho e pede a renúncia voluntária da atual Mesa Diretora. Júnior (como é conhecido) foi eleito pela primeira vez em 8 de novembro de 2006, e desde então vem sendo confirmado ano após ano...

O estranho é que Júnior defende (ou defendia) a renovação de comando. Disse ele à revista Radis (Ensp/Fiocruz) em janeiro de 2007: “A alternância de pessoas tem a ver com um processo muito característico nosso. Essa falta de renovação, de alternância, infelizmente é uma característica da sociedade brasileira. Se analisarmos o movimento social, o comunitário, o sindical, o político-partidário, perceberemos que a renovação de quadros não é como deveria ser. Estou há 10 anos participando de conselhos e levanto a bandeira da renovação. Quando da definição dos delegados que vão participar da conferência nacional, ainda prevalecem as referências históricas construídas. É uma disputa pela disputa e aí pode mais quem tem mais poder político, de organização. Além disso, há a pouca renovação, uma tônica do movimento social brasileiro. É uma questão complicada porque não podemos intervir no poder de cada segmento discutir e tomar suas próprias decisões. Mas é um debate que precisamos fazer. Aqui no conselho fizemos um debate e não foi fácil. Eu fui um dos que defenderam que o conselheiro só pode ter, no máximo, dois mandatos. Tem conselheiro que está aqui desde a criação do conselho, praticamente. E conseguimos aprovar, inclusive para suplente. Isso pode ser implementado nos conselhos de saúde”.


Então, o que terá mudado?
 
(...) Não se constroem mudanças, sobretudo na Saúde, se os usuários, os trabalhadores e os gestores não se sentem parte dessa mudança. Por isso eu quero estar presente em todas as reuniões do Conselho Nacional de Saúde, humildemente na condição de ministro, não só para legitimar o conselho, mas para contribuir com a experiência que nós tivemos no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social para a construção de consensos, do diálogo. A melhor coisa de um conselho não é você entrar na reunião com a sua posição e sair da reunião com essa mesma opinião. O que nós aprendemos no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social é que, ao longo desses oito anos, empresários e trabalhadores mantêm suas posições sobre seus segmentos, mas aprenderam, através do diálogo social, a construir uma terceira posição, que é fruto do consenso. E foi esse consenso que deu garantia ao conjunto de mudanças que o Brasil teve. E eu quero trazer junto com o Conselho Nacional de Saúde, de forma muito humilde, essa experiência de construção de consenso no âmbito do Conselho Nacional de Saúde.

E quero também contar com o conselho e com todos os gestores estaduais, municipais, trabalhadores, na organização da 14ª Conferência Nacional de Saúde, que nós vamos realizar em 2011, compondo e completando, ajudando a consoldar este ciclo de democracia, de gestão participativa iniciada pelo governo do presidente Lula, no qual a saúde e o SUS sempre foram grande experiência.

Trecho sensacional. Quando diz que frequentará as reuniões do CNS “humildemente na condição de ministro” faz crescer a esperança de transformação. Não foram poucos os que o fizeram com arrogância, e até 2006 o próprio ministro presidia o colegiado -- real contradição em termos, uma vez que a essência do controle social é que usuários, trabalhadores e gestores do SUS tenham representação paritária. 

Aproveito o trecho para falar um pouco de “controle social”, expressão consagrada na Constituição de 88 e tão mal-interpretada pela imprensa comercial. Controle social, pela visão da Reforma Sanitária, é a participação organizada dos diversos segmentos da sociedade na formulação e na execução das políticas públicas. A confusão generalizada se explica: “É que na sociologia esse termo polissêmico tem significado oposto ao que lhe atribui o amplo campo jurídico, constitucional e de cidadania”, esclarece a Radis. “O primeiro designa o Estado controlando a sociedade; o segundo, a sociedade controlando o Estado”. (Saiba mais sobre controle social aqui.)  

(...) Se alguém tem alguma dúvida de que a saúde estará, a partir de hoje, no centro da agenda de desenvolvimento do país é só ouvir o discurso da presidenta Dilma, que da série “nunca antes na história deste País”, nunca um presidente da República na sua mensagem inicial ao povo brasileiro se comprometeu tão fortemente com a consolidação e o fortalecimento do Sistema Único de Saúde.

De fato, Dilma Rousseff falou do SUS em sua mensagem ao Congresso Nacional:

(...) Queridas brasileiras e queridos brasileiros, consolidar o Sistema Único de Saúde será outra grande prioridade do meu governo. Para isso, vou acompanhar pessoalmente o desenvolvimento desse setor tão essencial para o povo brasileiro. Quero ser a presidenta que consolidou o SUS, tornando-o um dos maiores e melhores sistemas de saúde pública do mundo.

O SUS deve ter como meta a solução real do problema que atinge a pessoa que o procura, com uso de todos os instrumentos de diagnóstico e tratamento disponíveis, tornando os medicamentos acessíveis a todos, além de fortalecer as políticas de prevenção e promoção da saúde.

Vou usar a força do governo federal para acompanhar a qualidade do serviço prestado e o respeito ao usuário. Vamos estabelecer parcerias com o setor privado na área da saúde, assegurando a reciprocidade quando da utilização dos serviços do SUS. A formação e a presença de profissionais de saúde adequadamente distribuídos em todas as regiões do país será outra meta essencial ao bom funcionamento do sistema. (Íntegra aqui)

(...) Nós sabemos que não existe possibilidade de evolução na educação básica, no ensino fundamental - e a gente sabe que quando a criança que está no ensino fundamental é assistida pelas equipes de saúde, seu desempenho melhora - não é possível enfrentar o analfabetismo do País sem uma grande parceria na saúde para garantir próteses oftalmológicas para as pessoas poderem aprender a ler e a escrever, sem a participação e a parceria decisiva da área da saúde.

Neste trecho, e por várias vezes, Padilha mencionou a beleza da intersetorialidade, uma das diretrizes mais avançadas do SUS: a equidade em saúde e o fim da desigualdade em geral exigem políticas públicas inter e multissetoriais, sempre articuladas, em saneamento básico, abastecimento de água, moradia adequada, emprego, educação etc..

(...) Nós sabemos que esse País não cresce sem a força dos mais de quase 10 milhões de trabalhadores da saúde que estão espalhados por este País. Em várias cidades os trabalhadores da saúde são o principal fator de dinamismo da economia local, o principal elemento de dinamismo do comércio local. Está aqui o meu companheiro Odorico [Luiz Odorico Monteiro de Andrade, professor da Universidade Federal do Ceará, liderou projeto inovador de saúde pública em Icapuí (CE)], companheiro desde a época da construção da direção executiva nacional dos estudantes de medicina, já foi secretario municipal de Icapuí, Quixadá, Sobral, Fortaleza, ele sempre lembra que, lá em Quixadá, cada equipe de Saúde da Família que era criada gerava um impacto de renda para aquela comunidade local indireta, porque as pessoas paravam de vender seus bodes, suas cabras, sua produção local para sair de sua cidade ou pagar um médico, e isso retornava para a economia da cidade.

Comentário fantástico, de quem está antenado nas formas modernas de eliminação da miséria e distribuição de renda! Este é o princípio do Bolsa-Família, da economia solidária, do cooperativismo (ver no #TeiaLivre a coluna da companheira Janine Rodrigues), do microcrédito, do Programa de Aquisição de Alimentos (MDS), entre outros, tudo isso avançou no governo Lula!

(...) A última Pnad mostra que 86% daqueles que receberam atendimento no SUS citaram que o atendimento foi satisfatório. A contradição: como o SUS, um sistema como esse que nós temos plena convicção do papel de inclusão social neste país, pode continuar sendo elemento de crítica tão forte e de grande expectativa da população? A grande chave da questão é que as pessoas só dizem que é satisfatório quando entram, quando garantem o acesso. E a grande reclamação das pessoas é exatamente o não-acesso, a demora, a espera. Eu quero dizer que tenho, como ministro da Saúde, uma obsessão e quero que seja obsessão minha, dos meus secretários – preparem-se todos –, da minha secretária, da minha equipe, a nossa obsessão tem que ser colocar no centro do planejamento das ações de saúde deste país um esforço: perseguir a garantia do acolhimento de qualidade em tempo adequado às necessidades de saúde daquelas pessoas. Este tem que ser um objetivo quase único deste Ministério. (...) Cada secretário, cada diretor de programa, cada coordenador, cada servidor, cada consultor deste Ministério tem que acordar de manhã e dormir à noite se perguntando o que fez para garantir acolhimento de qualidade, em tempo real, adequado para a necessidade de saúde das pessoas.

Esta foi a fala que ganhou destaque na imprensa comercial e no próprio Ministério da Saúde. A fila é o pior propagandista do SUS, mas fila só acaba com aumento de pessoal, salários justos, bons equipamentos. Ou seja, com dinheiro. O principal problema do SUS é o subfinanciamento.

(...) Eu sei que não é fácil. Eu sei que o problema da fila, da demora e da espera é recorrente, inclusive nos sistemas públicos mais consolidados no mundo, muito mais antigos do que o nosso, com recursos muito maiores.

Aqui é bom lembrar que a ultraconservadora indústria americana das seguradoras privadas de saúde, que trata como “coisa de comunista” qualquer tentativa de democratização dos serviços, emprega milhões de dólares na difamação dos sistemas universais de saúde. Isso foi comprovado recentemente: Wendell Potter, ex-executivo da gigantesca Cigna, uma das mais cruéis no tratamento dado aos usuários, pediu perdão ao premiado cineasta Michael Moore diante das câmeras da NBC americana por ter difamado seu documentário Sicko, de 2007. Os argumentos caluniosos da Cigna foram repetidos por George W. Bush em seu recente livro de memórias. Contribuiu para esta visão equivocada o filme Invasões bárbaras (2003), muito festejado pelos opositores da universalização: incidentes inevitáveis em qualquer sistema são usados para se desenhar caricatura grotesca do “SUS” canadense.

(...) Nós precisamos ter -- está na hora, o SUS está maduro para isso -- um grande mapa nacional que estabeleça claramente quais são os equipamentos ofertados por nós, a partir das necessidades da saúde que existem, a partir de um debate sobre um padrão de integralidade e que tem que envolver a todos nós. Gestores, Academia, conselheiros. Esse é um desafio para esse Ministério que eu quero assumir.

(...) Acredito que esteja na hora de termos um indicador nacional de garantia da qualidade de acesso, que possa ter padrões regionais. Que se estabeleça de forma pactuada com estados e municípios qual é esse padrão, esse indicador. Que seja expresso e exposto à população, à imprensa, à Academia, às pessoas que querem e exigem melhoria na gestão do SUS e no campo da Saúde (que nós temos que receber essa crítica com muita humildade), e que seja indicador público. Que seja a meta permanente de cada gestor, objeto central do processo de pactuação entre União, estados e municípios, acompanhado e controlado pelo controle social, pelos órgãos de controle. Mas que seja nossa meta permanente. Que parta, sim, de uma linha de base, mas que nós vamos reunir esforços únicos. A indução financeira tem que estar pautada nisso para melhorar cada vez mais esse indicador de garantia de qualidade de acesso em todo o país.

Mapeamento da situação de saúde e indicadores de saúde são ferramentas que representam avanço real em gestão de saúde. A brasileira é baseada em número de procedimentos, em vez de avaliação por indicadores e metas. A pergunta é: o atual desenho da gestão pública de saúde pode se adaptar bem a indicadores e metas? Defensores e detratores das fundações estatais de direito privado, entidade pública que contrata servidores pelo regime celetista, há anos polemizam sobre a questão – que certamente voltará a ser tratada aqui.

Ocorre que o problema crucial do SUS não é gestão, é subfinanciamento.

(...) Vários outros sistemas públicos nacionais que nós construímos ao longo desses oito anos do governo do Presidente Lula se inspiraram no SUS. O modelo de pactuação, as ideias de programação integrada, as ideias de um fundo nacional, a ideia do repasse fundo a fundo, a ideia do controle social. A contradição é que o SUS é uma referência de modelo de pactuação e estruturação, de uma política pública interfederativa para outros sistemas, mas ainda temos isso muito inacabado, e eu acho que esse é o nosso grande esforço. É aproveitar a capacidade que nós tivemos, lá em 1988, de construir um modelo e uma referência de um processo de pactuação federativa, e termos a coragem de dar um passo à frente para esse modelo de pactuação federativa, reconhecendo que tem gargalos a serem enfrentados, e eu quero assumir com os governadores e prefeitos, secretários estaduais e municipais, o esforço de construção disso.

O papel inspirador do SUS é reconhecido até internacionalmente. O problema é exatamente esse passo adiante: a Constituição que o consagrou completou 20 anos em 2008, a Lei Orgânica da Saúde (nº 8.080/1990) também, em 2010, mas o sistema permanece incompleto. Vamos acompanhar as ações do novo ministro para que o modelo sonhado pelos sanitaristas saia finalmente do papel. No trecho a seguir Padilha falará sobre questão fundamental nesse processo, a do financiamento. (Saiba mais sobre a construção do SUS aqui.)

Foi importante o processo de descentralização, nós sabemos disso. Mas nós sabemos que a integralidade do cuidado da saúde só se constitui, se constrói, se consolida, quando você tem uma rede de atenção à saúde, de vários níveis de atenção, para dar conta dessa integralidade. E sabemos que é impossível, às vezes, que essa rede esteja só em um nível único de gestão. Seja em um município, ou, às vezes, não está nem no Estado.

Excelente. A APS (Atenção Primária à Saúde) em alta. Mas sua essência é municipal. Fora disso temos UPAs...

A Saúde que foi ousada em criar o SUS tem que ser ousada neste momento em consolidar uma nova relação federativa entre União, estados e municípios. Quem sabe a gente possa conseguir atingir aquilo que nós chamamos de uma imagem ideal, que é compromissos únicos, sistema único e caixa único. Todos sabem do que estou falando.

Os sanitaristas sabem. Uma das reivindicações mais caras do Movimento Sanitário é exatamente o Ministério Único da Saúde -- “o MUS, onde secretarias e ministro falem e ajam de maneira coesa e única com base legal”; se não for assim teremos OSs, Oscips, um mar de diferentes SUS... Hi, já temos!

(...) Quero nesse processo de debate interfederativo firmar um compromisso com os governadores e prefeitos também de aprovarmos a regulamentação da Emenda Constitucional 29. Nós precisamos aproveitar esse momento político, essa expectativa em relação ao campo da Saúde, de governadores dos mais variados partidos, que começam a perceber a necessidade de termos regras claras em relação ao financiamento da Saúde. Nós não podemos eternamente depender da boa vontade de governos que assumem, como foi o governo do Presidente Lula, que cumpriu a EC 29 e como certamente será a presidenta Dilma. Nós precisamos ter regras claras de financiamento sustentável, que seja sustentável também para a sociedade, mas que fique claro qual é o volume de recursos que cada nível da Federação tem que investir na área da Saúde, e o que é investimento na Saúde neste país.

Eis a questão do subfinanciamento aparecendo no discurso: a Emenda Constitucional 29 determina o investimento mínimo em saúde de 10% das receitas brutas da União e estabelece o que é investimento em saúde; muitos gestores usam a verba da saúde para pagar, por exemplo, aposentados da área, o que é irregular.

Eu quero falar agora de alguns pedidos especiais que a presidenta Dilma me fez. Em primeiro lugar, não podemos perder a oportunidade de, tendo uma mulher como presidente da República, transformarmos como grande prioridade deste ministério, dos gestores estaduais, dos gestores municipais, dos demais ministérios e órgãos de governo, a Saúde da Mulher e da Criança. A presidenta Dilma assumiu ao longo da campanha eleitoral um compromisso de construir no país o que ela chama de Rede Cegonha, que é o esforço articulado de vários equipamentos de saúde, nos vários níveis de atenção.

Saúde da Mulher é uma área técnica do Ministério da Saúde, já com mais de 25 anos, que inclui várias ações específicas, entre as quais a ampla Política Nacional de Saúde Integrada da Mulher. A Área Técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno também tem ações específicas e integradas.

Um segundo pedido especial que ela me fez foi que, o mais rápido possível, a gente possa implantar no “Aqui Tem Farmácia Popular” a gratuidade de medicamentos para hipertensos e diabéticos em todo o país. Terceiro pedido que a presidenta Dilma me fez foi termos um cuidado especial e prioritário em relação à implantação das UPAs em todo o país. (...) Também implantar as UPAs sem perder a dimensão de duas questões prioritárias para um novo modelo de atenção à saúde: a promoção à saúde e a atenção primária à saúde. Implantar as UPAs não significa um descompromisso com o esforço da promoção à saúde.

A gratuidade dos medicamentos e a Atenção Primária à Saúde (APS, modelo segundo o qual a Unidade Básica de Saúde é a porta de entrada do sistema) são preceitos originais do SUS. Seu descumprimento ao longo dos anos acabou resultando na criação da Farmácia Popular, da UPA e de outros “programas” e “estratégias” que em última análise desviam dinheiro do sistema. Cumprimento da Constituição e da Lei 8.080 é o que pedem os sanitaristas, para quem “O SUS real tem que ser o SUS legal” (Gilson Carvalho). 

E não entendo que “novo modelo” é esse, ou como a UPA não prejudica a APS. Perguntei ao @padilhando pelo Twitter, mas não obtive resposta...

(...) Sei e defendo que o combate ao crack não pode fazer com que a gente perca as diretrizes que arduamente construímos da luta antimanicomial ao longo desses anos. Sei que os serviços de atenção não podem fazer com que as pessoas percam sua autonomia, percam o contato com a família, percam o contato com o espaço social onde se constrói sua identidade. Porque nós não queremos pessoas permanentemente internadas, nós queremos evitar esse mal e fazer com que as pessoas sejam ativas e protagonistas na vida e que continuem a viver. Agora, eu acho que, nós temos que nos utilizar de todos os nossos esforços: éticos, técnicos, políticos, financeiros, para a Saúde ajudar outros ministérios a liderar o enfrentamento. Quero contar (sei que os meninos estavam lá fora e não puderam entrar aqui) com o pessoal da Central Única das Favelas, que constrói uma atenção muito interessante de prevenção, de combate à introdução do crack, em várias favelas das regiões metropolitanas, e quero contar com outras experiências sobretudo dos movimentos sociais.

Muito bom que o ministro tenha dito o óbvio, ou seja, que o combate ao crack é uma ação inter e multissetorial integrada às ações de Saúde Mental. O Brasil aderiu aos princípios humanistas da Reforma Psiquiátrica com a Lei 10.216, em vigor desde 2001, seguindo os ideais do psiquiatra italiano Franco Basaglia (1924-1980): “A psiquiatria desde seu nascimento é em si uma técnica altamente repressiva que o Estado sempre usou para oprimir os doentes pobres”. Um dos psiquiatras mais discutidos no mundo, Basaglia usou a experiência da Comunidade Terapêutica desenvolvida por Maxwell Jones na Escócia para transformar as instituições psiquiátricas que dirigiu na Itália. “Acabou com as medidas institucionais de repressão, criou condições para reuniões entre médicos e pacientes e devolveu ao doente mental a dignidade de cidadão.” (Memória da Loucura, Centro Cultural da Saúde). Seu livro A instituição negada, considerada obra-prima da psiquiatria contemporânea, é uma das principais referências da área. Basaglia visitou o Brasil na década de 70 e é figura emblemática na luta antimanicomial brasileira. A Reforma Psiquiátrica ainda tem grandes inimigos no país, especialmente a verdadeira “indústria” que constituem as instituições psiquiátricas. (Saiba mais sobre a Reforma Psiquiátrica brasileira aqui.) 

(...) Quero convocar todos vocês aqui a jogar também toda a nossa alma, toda a nossa emoção, todo nosso coração para a consolidação desse filho da luta democrática que é o Sistema Único de Saúde. Eu diria que agora somos todos e tudo pela saúde do Brasil.

Pode contar comigo para defender os princípios e as diretrizes desse filho dileto. Espero muito que não sequestrem a criança!

5 comentários:

marel disse...

Um tour de force fantástico, mãe, parabéns!

Anônimo disse...

Já falei na #teialivre e repito aqui,
muito bom esse seu artigo. Aprendi muito com ele e torço para que o min.
Padilha faça um bom trabalho.Parabéns!

Pagu

mari disse...

Brigadim... e faltou comentar tanta coisa... a saúde pública é um mundo quase desconhecido fora do meio.

Vera Silva disse...

Mari, brilhantes os comentários.
Com 38 anos de trabalho como profissional autônoma da área de saúde tenho visto, de fora, os erros da saúde. Todos podem ser corrigidos se o SUS funcionar como o Ministro e você explicaram.
Penso que o maior impecilho está na tradição de misturar política partidária com saúde e educação. Quando isto ocorre, como no DF nos últimos 8 anos, tudo emperra. As verbas são aplicadas por 3 anos no banco estadual, p.e., rendendo quase o dobro e nadica de nada onde deveriam ter sido aplicadas.

mari disse...

mas o ministro deu umas pisadas...

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