sábado, 6 de fevereiro de 2010
Obama, Obama...
Mais uma tradução preciosa da minha virtual amiga de infância Caia Fittipaldi!
EUA: presidência e conversa mole (parte 1)
Tariq Ali, New Left Review n. 61, jan.-fev. 2010
Um ano depois de a presidência dos EUA ter mudado de mãos, o que mudou no império norte-americano? Durante o governo Bush, a ‘grande’ imprensa e boa parte da seção amnésica da esquerda repetia, que os EUA estariam sob o poder de um regime aberrante, produto de praticamente um golpe de Estado aplicado por um pequeno grupo de direitistas fanáticos – combinado a corporações ultrarreacionárias –, que teria sequestrado a democracia dos EUA, pondo-a a serviço de agressões jamais vistas contra o Oriente Médio. Resposta a isso, os EUA teriam eleito um mestiço alistado no Partido Democrata, que prometia curar todas as feridas ‘domésticas’ e restaurar a boa reputação dos EUA no mundo. Esse presidente foi recebido numa onda de euforia ideológica jamais vista desde os dias de Kennedy. Outra vez, os EUA mostrariam sua verdadeira face – decididos, mas pacíficos; firmes, mas generosos; humanos, respeitosos, multiculturalistas – ao mundo. Naturalmente, como um Lincoln ou um Roosevelt de nossos tempos, o novo jovem presidente dos EUA teria de fazer concessões, como qualquer estadista. Mas, pelo menos, estaria acabado o vergonhoso interlúdio de bandidagem e criminalidade dos Republicanos. Bush e Cheney haviam interrompido a continuidade de uma liderança norte-americana multilateral que tanto bem fizera ao país durante a Guerra Fria e depois dela. Obama recuperaria esse fio dessa meada.
Raramente a mitologia de autopromoção – ou ingenuidade bem-intencionada – foi tão rapidamente desmascarada. Não houve qualquer rompimento fundamental na política externa, como oposta às cantigas diplomáticas, entre os governos Bush 1, Clinton e Bush 2; tampouco houve qualquer mudança importante entre os governos Bush e Obama. Os objetivos estratégicos e imperativos dos EUA continuam os mesmos; tampouco mudaram os principais teatros e os meios de operação. Desde o colapso da URSS, a Doutrina Carter – a construção de um novo pilar democrático de direitos humanos – definiu o Oriente Médio estendido como campo de batalha central para a imposição do poder norte-americano em todo o mundo. Basta olhar para cada setor, para ver que Obama é produto de Bush, como Bush, de Clinton; e Clinton, de Bush-pai, em ritmo de filiação bíblica.
Continuam a ignorar Gaza
A posição de Obama a favor de Israel já estava manifesta antes da posse. Dia 27/12/2008, o Exército de Israel [ing. Israel Defense Forces, IDF] lançou ataque mortífero, por terra e ar, contra a população de Gaza. Os bombardeiros, incêndios provocados, matança generalizada continuaram sem interrupção por 22 dias, tempo durante o qual o presidente-eleito não enunciou uma sílaba de reprovação. Conforme planos já existentes, Telavive suspendeu os ataques algumas horas antes da posse de Obama, dia 20/1/2009, para não estragar a festa. Àquela altura, Obama já nomeara um doberman ultrassionista de Chicago, Rahm Emanuel, ex-voluntário do Exército de Israel, para trabalhar em sua sala, como principal assessor da presidênci a. Imediatamente depois da posse, Obama – como todos os presidentes dos EUA – falou a favor da paz entre os dois povos sofredores da Terra Santa e, outra vez como todos os que o antecederam, pediu que os palestinos reconhecessem Israel e que Israel suspendesse as construções nos territórios que invadiu e ocupou em 1967. Uma semana depois do discurso de Obama no Cairo, em que se manifestou contra a criação de novas colônias israelenses na Palestina, a coalizão de Netanyahu já ampliava impunemente o roubo de terra árabe em Jerusalém Leste. No outono, a secretária de Estado Hilária Clinton dava parabéns a Netanyahu por ter feito “concessões sem precedentes”. Mark Landler do New York Times, em conferência de imprensa em Jerusalém, perguntou à secretária Hilária: “Senhora Secretária, quando esteve aqui, na primeira visita, a senhora falou duramente contra a demolição de casas de árabes em Jerusalém Le ste. Mesmo assim, as demolições prosseguiram e, de fato, há alguns dias, o prefeito de Jerusalém assinou nova ordem para demolir mais casas de árabes. O que a senhora teria a comentar hoje, sobre a mesma política?” A secretária Hilária ignorou a pergunta.[1]
Um mês antes, uma comissão de investigação da ONU [ing. “UN Fact Finding Mission”] nomeada para examinar denúncias sobre a invasão de Gaza, relatou que o Exército de Israel praticara atos criminosos, que não deixavam de ser criminosos por terem sido ou provocados ou respondidos com foguetes caseiros disparados pelo Hamás. Comandada por um dos mais aplicados e reconhecidos juízes especialistas em ‘direito internacional’, o juiz sul-africano Richard Goldstone, promotor que já trabalhara em sessão pré-orquestrada do Tribunal de Haia sobre a Ioguslávia e sionista conhecido e professo, as acusações contra Israel foram reduzidas ao mínimo necessário para garantir alguma credibilidade ao Relatório. Há impressionantes diferenças entre os testemunhos que a Comissão da ONU realmente ouviu e o que se lê no relatório.[2] Mas, desabituada de receber críticas de qualquer tipo, Telavive reagiu com fúria; e Washington ordenou a seu cliente e cabeça do complô, Mahmoud Abbas, que se opusesse ao Relatório na ONU.[3] Pareceu demais até para os seguidores de Abbas e Abbas desobedeceu; mas houve reações violentas e Abbas teve de desdizer-se, o que o desacreditou ainda mais. O episódio confirmou que o controle do AIPAC sobre Washington continua tão forte como sempre – ao contrário do que supõem alguns iludidos da esquerda dos EUA, para os quais o lobby israelense estaria envelhecido e sem força, e estaria sendo substituído por algum ramo mais ‘ilustrado’ do sionismo norte-americano.
No teatro palestino do sistema norte-americano, a ausência de novidade significativa não implica ausência de movimento. Considerada de um ponto de vista mais amplo, a política dos EUA tem sido, há algum tempo, estimular a ação de Israel na direção de criar um ou mais bantustãos, o que atende perfeitamente bem seus interesses.[4] Para tanto, é claro, é indispensável eliminar qualquer possível liderança palestina legítima, ou Estado palestino real. Os Acordos de Oslo foram um primeiro passo desse processo, destruindo a credibilidade da OLP e instaurando uma ‘Autoridade Palestina’ que não passa de fachada de Potemkin para a única real autoridade nos territórios ocupados, a saber, o Exército de Israel.
Incapaz de obter qualquer respeitabilidade ou autoridade, por cerimonial que fosse, a liderança da OLP na Cisjordânia passou a dedicar-se a fazer fortuna, abandonando definitivamente a luta pelos interesses do povo palestino, entregue à pobreza mais absoluta e regularmente exposto à violência dos colonos judeus. Trabalhando na direção oposta, e criando um sistema primitivo mais eficaz de bem-estar social, capaz de distribuir assistência médica, remédios e alimentos nas áreas mais miseravelmente pobres, e com creches e asilos para velhos e doentes, o Hamás conseguiu ganhar apoio popular e venceu as eleições palestinas de 2006. Europa e EUA reagiram imediatamente com o boicote político-econômico, e apoiaram a volta do partido Fatah ao poder na Cisjordânia. Em Gaza, onde o Hamas era mais forte, Israel tentou du rante algum tempo inflar Mohammed Dahlan para que liderasse um golpe – Dahlan é o chefe-de-quadrilha favorito de Washington, dentro do aparelho de segurança da OLP. Ben-Eliezer, ministro da Defesa contou, em depoimento à Comissão de Negócios Estrangeiros e Defesa, do Parlamento de Israel, que em 2002, quando o Exército de Israel retirou-se de Gaza, ofereceu a Faixa a Dahlan, que desejava provocar a guerra civil na Palestina que tanto perturbava a vida dos colonos judeus.
Quatro anos antes, Dahlan recebera ajuda de Washington para promover golpe militar em Gaza,[5] mas foi vencido pelo Hamás, que assumiu o controle da Faixa em meados de 2007. Depois do bloqueio como castigo político e econômico por os eleitores palestinos terem-se levantado e resistido aos expressos desejos euro-norte-americanos, veio o castigo israelense â �“ o ataque do final de 2008 –, em relação ao qual Obama fez como se nada visse, nada ouvisse, de nada soubesse.
Mas o resultado, agora, não é o impasse sempre regular e pontualmente lastimado pelos sonhadores que ainda sonham com “acordos de paz”. Depois de repetidos golpes, e cada vez mais isolada, a resistência palestina está sendo paulatinamente minada e enfraquecida, a ponto de o próprio Hamás – sem conseguir desenvolver qualquer estratégia coerente, nem de romper o compromisso dos Acordos de Oslo, dos quais também o Hamás tornou-se prisioneiro – começar a considerar a possibilidade de aceitar o nada que Israel oferece, paramentado com outros nadas que o ocidente oferece. Não há nenhum tipo significativo de Autoridade Palestina. Deputados eleitos pela Cisjordânia ou Gaza são tratados como enviados de ONGs de mendigos: recebem migalhas se permanecem ajoelhados e seguem o que o ocidente ordene; e castigos, se sae m da linha.
Racionalmente, os palestinos melhor fariam se dissolvessem a Autoridade e exigissem direitos iguais de cidadania num único Estado, apoiados em campanha internacional a favor do boicote a Israel, desinvestimento e sanções, até que se desmantelem todas as estruturas de apartheid vigentes em Israel. Na prática, há pequena ou nenhuma probabilidade de isso acontecer em futuro próximo. O que se deve prever, muito mais provavelmente, é a convergência – já promovida e elogiada no jornal Haaretz como mais brilhantemente iluminada que a de Rabin< span style="font-family: ">[6] – de Obama e Netanyahu, na direção de uma solução final, com várias entidades ‘palestinas’ com as quais Israel poderá conviver e nas quais morrerá a Palestina. [continua]
[1] ‘Remarks with Israeli Prime Minister Binyamin Netanyahu’, Jerusalém, 31/10/2009, em http://www.state.gov/secretary/rm/2009a/10/131145.htm.
[2] Em entrevista à Rádio do Exército de Israel, em hebraico, a filha do juiz Goldstone, Nicole Goldstone, disse: “Meu pai aceitou esse trabalho, porque acreditava que estaria trabalhando pela paz para todos, também para Israel. (...) Não foi fácil. Meu pai não esperava ver e ouvir o que viu e ouviu”. E disse ao entrevistador que, dependesse de seu pai, o relatório teria sido muito mais duro. Deve-se acrescentar que, não fosse pela participação de uma advogada paquistanesa, Hina Jilani, na mesma missão de investigação, o relatório teria sido muito mais ‘macio ’.
[3] Os israelenses impuseram a sanção máxima: se Abbas endossasse o Relatório Goldstone, cancelava-se o negócio de telefonia com uma empresa israelense, e o pessoal da OLP perderia empregos e comissões.
[4] Deve-se registrar que ambos, o Bispo Tutu e Ronnie Kasrils, ex-ministro de Defesa do governo de Mandela, discordam veementemente dessa analogia. Para ambos, as condições nas quais vivem os palestinos nos territórios ocupados é muitas vezes pior do que a dos negros nos bantustões
[5] Ver ROSE, David, ‘The Gaza Bombshell’, Vanity Fair, April 2008.
[6] Por exemplo, ver Ari Shavit, ‘Netanyahu is Positioning Himself to the Left of Rabin’, Haaretz, 6/12/2009.
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