terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

EUA: presidência e conversa mole (2)

Em Bagdá, EUA e aliados colhem o que plantaram

Tariq Ali, New Left Review n. 61, jan.-fev. 2010
Tradução: Caia Fittipaldi

Há preocupações correntes, extremamente urgentes: as zonas de guerra que avançam cada vez mais rumo ao oriente profundo exigem toda a atenção imperial. É possível que o Iraque tenha saído das manchetes, mas não saiu dos briefings de segurança lidos diariamente no Salão Oval. Em 2002, nos primeiros degraus de sua escalada política, ainda senador praticamente desconhecido do estado de Illinois, Obama opôs-se ao ataque contra o Iraque; naquele momento, o voto saiu-lhe praticamente gratuito, sem qualquer custo político. Quando foi eleito presidente, o exército dos EUA já ocupava o Iraque há seis anos; e o primeiro ato de Obama-presidente foi manter o secretário de Defesa de Bush, Robert Gates, funcionário veterano da CIA e veterano do caso Irã-Contras, no Pentágono. Difícil imaginar sinal mais cru e mais convincente de continuísmo político. Nos últimos dois anos do governo republicano, o número de soldados foi aumentado em 20%, para 150 mil, numa avançada [ing. surge] saudada pelos saudadores de sempre como suficiente para esmagar a resistência iraquiana, preparando o país para um governo estável pró-Ocidente, com muita sorte talvez também democrático, no futuro. O novo governo democrata não fugiu um passo desse script. O Acordo “Status of Forces”, de três anos, assinado por Bush e seus colaboradores em Bagdá estipulou que todos os soldados estariam fora do Iraque em dezembro de 2011, embora acordo posterior sempre pudesse prolongar a estadia; e embora, também, as forças de ‘combate’ dos EUA devessem estar fora de cidades, vilas e aldeias iraquianas em junho de 2009. Antes da eleição, Obama prometeu retirar do Iraque todas as forças ‘de combate’, ao longo dos primeiros 16 meses de governo, o que nos leva a maio de 2010 – promessa que veio adornada com uma cláusula ‘de segurança’, segundo a qual tudo poderia ser modificado, conforme os eventos. E assim foi, já que em fevereiro de 2009 anunciou-se que as tropas de combate sairão do Iraque em setembro de 2010, ficando lá 50 mil soldados ‘residuais’, que também se convertem em tropas de combate, se forem necessárias para “proteger os esforços civis e militares dos EUA”.[1]




O massacre e a devastação que os EUA e aliados, principalmente os britânicos, provocaram no Iraque já são hoje bem conhecidos: a destruição do patrimônio cultural iraquiano, o brutal desmembramento da infraestrutura social, o assalto aos recursos naturais do país, o rompimento e o embaralhamento de fronteiras tradicionais e, sobretudo, a expulsão de milhares de iraquianos – mais de um milhão de mortos; três milhões de refugiados; cinco milhões de órfãos, segundo dados do governo.[2]

Sem perder tempo com esses detalhes, o comandante-em-chefe e seus generais estão com a cabeça em outras coisas. Poderá o Iraque ser considerado posto avançado satisfatoriamente seguro para o sistema ‘ocidental’ dos EUA no Oriente Médio? Quanto a isso, os EUA têm muitas razões para suspeitar, apesar das muitas para sentir-se seguros. Comparada a situação atual e o ponto máximo da resistência iraquiana em 2006, praticamente todo o país está hoje sob controle militar de Bagdá e o número de baixas entre os norte-americanos é mínimo. Um exército predominantemente xiita – mais de 250 mil homens – foi treinado e armado até os dentes para enfrentar qualquer guerrilha local, de qualquer grupo resistente local.

A limpeza sectária da capital, em escala da qual os terroristas do Haganah israelense se orgulhariam, praticamente dizimou os grupos e bairros sunitas pela primeira vez, dando ao regime de Maliki lá implantado pelo governo Bush pleno controle sobre todo o país. Para o norte, os protetorados curdos continuam firmes bastiões do poder dos EUA. No sul, as milícias de Moqtada al-Sadr foram despachadas para bem longe. Melhor que tudo isso, os poços de petróleo estão sendo devolvidos aos que sabem dar-lhes bom uso – em leilões que distribuem concessões de 25 anos às corporações estrangeiras de sempre. Alguns excessos maculam a cena em Bagdá,[3] mas o novo Iraque é abençoado pelo sorriso santificado do aiatolá Sistani.

Com tudo isso, persiste o temor incômodo de que a resistência iraquiana, que há apenas alguns dias infligiu tão rudes golpes à máquina de guerra da maior potência militar do mundo, estaria reparando feridas e danos, depois de muitas perdas e baixas, e possa em breve voltar a ter condições de operação e trabalho.[4]

Para prevenir-se contra tais perigos, Washington está reativando equivalentes modernos – imensamente maiores e muito mais feias – das fortalezas dos Cruzados. A base militar de Balad, cujos canhões alcançam Bagdá, é uma mini-cidade-Estado norte-americana. Inclui um aeroporto – o segundo mais movimentado do mundo, perdendo só para Heathrow, Londres – e pode abrigar mais de 30 mil soldados e pessoal administrativo; além de uma força de trabalho braçal composta de trabalhadores sul-asiáticos que limpam casas, cozinham, lavam e servem nos bares Subway; traficantes de drogas ilícitas jamais sem estoque para vender; e prostitutas ocidentais e europeias que suprem outras carências do pessoal que vive na base de Balad. Há 15 linhas de ônibus complementares que operam na área militar, mas as conexões são difíceis para o pessoal d a base.[5]

Há outras 13 bases militares e da Força Aérea espalhadas pelo país, entre as quais o Campo Renegade próximo de Kirkuk, que vigia os poços de petróleo; a base de Badraj, na fronteira com o Irã, para espionar a República Islâmica; e uma base britânica, construída nos anos 30s em Nasiriyah, reformada para satisfazer os apetites dos norte-americanos. Em Bagdá, ao mesmo tempo, o procônsul dos EUA pode hoje gozar os luxos da maior e mais cara embaixada que há no planeta – do tamanho da cidade do Vaticano – no enclave fortificado da Zona Verde.

Depois de invadir o Iraque como presa colonial em 1920 e instalar a dinastia Haxemita como seu instrumento local, os britânicos tiveram de encarar rebelião em alta escala, que foi reprimida com muita dificuldade e ainda maior selvageria. Nos 12 anos seguintes, Londres regeu o Iraque como potência imperial e servo subordinado, antes de finalmente converter a dominação em “mandato” – garantido pela Liga das Nações –, em 1932. Mas o regime cliente deixado para trás ainda sobreviveu durante um quarto de século, até ser derrubado na revolução de 1958.

A ocupação do Iraque pelos EUA fez ressurgir movimento de resistência e guerrilha mais forte do que o anterior; a resistência no Iraque é o movimento de resistência mais duradouro, até agora, contra potência ocupante hoje com autorização da ONU. O império dos EUA também deixará, quando partir, um regime fantoche para controlar o país rumo ao que se espera que seja algum futuro. Nessa circuntância, bem podem surgir sucessores para o posto de Ramsay MacDonald (1866-1937) – velha, simpática, patética figura, sempre rápido com as palavras de elevação e encorajamento –, melhores que Barack Obama. Mas a história corre acelerada nos tempos atuais, e há mínima probabilidade de que Maliki e seus torturadores tenham destino igual ao de Nuri al-Said, em outro levante nacional que arranque de solo iraquiano as bases militares estra ngeiras, as embaixadas-fortalezas, as empresas de exploração de petróleo e, com elas, arranque também os colaboradores locais.

Ameaças e mais ameaças contra Teerã

Para as elites norte-americanas, o Irã é um enigma de muitos anos: “República Islâmica” que cospe fogo contra o Grande Satã, ao mesmo tempo que oferece apoio a qualquer satã menor que lhe apareça, sejam os Contra na Nicarágua, seja contra a invasão do Afeganistão ou a ocupação do Iraque. Os dirigentes de Israel não recebem muitos desses benefícios, e receberam sombria dose da retórica dos mulás, dirigida a eles com ferocidade, como também ao Sub-Satã em Londres e seus patrões em Washington. Acima de tudo, com a perspectiva de um Irã nuclear a ameaçar o monopólio israelense das armas de destruição em massa no Oriente Médio, Telavive mobilizou todos os seus dólares e amigos nos EUA numa campanha que assegure que Washington comprometa-se contra o Irã, a qualquer custo. Não que Washington tenha oferecido qualquer resis tência, dado que os objetivos de Israel já estão muito profundamente internalizados e são como segunda natureza dos políticos dos EUA.

Desdenhando completamente as muitas aberturas do regime de Khatami na direção de um acordo regional paralelo em 2003, o governo Republicano procurou, em vez disso, obrigar o Irã a submeter-se ao monopólio israelense, respondendo às tiradas oratórias de Teerã e apertando ainda mais as sanções econômicas.

Sem dizer muito claramente, Obama permitiu a interpretação de que, com ele na Casa Branca, as coisas seriam tratadas de outro modo. Melhor teria sido iniciar diálogo menos autoritário com Teerã, fazendo valer o tradicional pragmatismo do regime e a tendência pró-EUA da classe média e dos jovens ocidentalizados, e obter acordo diplomático no interesse de todos os envolvindo, capando a capacidade nuclear do Irã em troca de apoio econômico e político. Mas o timing não foi propício e os planos foram atropelados pela polarização política no próprio Irã.

As lutas entre facções do establishment religioso acirraram-se muito nas eleições presidenciais de junho de 2009, quando ganhou fôlego a tentativa de grupos mais abertamente pró-ocidente chegarem ao poder numa onda de protestos da classe (sobretudo) média; os protestos foram sufocadas pela contrarreação do poder governante, na qual se combinaram fraude eleitoral e violência policial. Para Obama, a oportunidade para pregação ideológica pareceu boa demais para resistir.

Em demonstração de demagogia sem pejo, Obama, de olhos lacrimosos, lamentou a morte de um manifestante em Teerã – no mesmo dia em que os mísseis lançados por seus aviões-robôs não tripulados varreram do mundo 60 habitantes de uma pequena vila, a maioria dos quais mulheres e crianças, no Paquistão.

Com a mídia ocidental fazendo coro às lágrimas do presidente, o candidato derrotado na eleição iraniana – historicamente um dos piores açougueiros do regime, responsável por execuções em massa nos anos 80s – foi convertido em novo ícone do Mundo Livre. E os esquemas para a reconciliação em grande estilo entre Obama e Ahmadinejad tiveram de ser postos de lado.

Depois desse desastre diplomático, o governo Obama reverteu à linha do governo Bush Filho, e passou a tentar encurralar Rússia e China – dado que os Europeus já estavam acertados –, forçando-os a impor bloqueio econômico ao Irã, na esperança de enforcar o país, até que o Supremo Líder seja ou dobrado ou derrubado. Caso essa estratégia não funcione, há a ameaça-estepe, sempre presente, de um ataque aéreo contra as instalações nucleares iranianas, por Israel ou diretamente pelos EUA. Embora pouco provável, essa blitz não deve ser descartada antecipadamente, porque depois que o Ocidente em geral – nesse caso, não só Obama, mas Sarkozy, Brown e Merkel – declarou que não se admite um Irã nuclear, há pouco espaço para mudar os discursos, se se chegar a ponto mais radicaliza do das discussões.[6]

No passado, o temor da retaliação iraniana contra as frágeis posições dos EUA no Iraque bastaria para conter esse tipo de assalto. Mas a influência de Teerã em Bagdá já não é o que foi. Antes, o Irã ainda podia crer que o Iraque rapidamente se converteria em República Islâmica gêmea; hoje, já nada autoriza a esperar que as relações entre os dois países sejam melhores que quaisquer outras entre Estados sunitas na Região. No momento, o regime de Maliki sabe de que lado do pão passar a manteiga – o Irã jamais igualará a quantia de dólares e armas que podem vir dos EUA; e são altas as pretensões de Sistani a controlar teólogos de várias crenças do outro lado da fronteira. Permanece a incógnita sobre o quanto se pode confiar nas milícias iraqueanas de Moqtada al-Sadr (sobre ele, ver http://news.bbc.co.uk/2/hi/middle_east/3131330.stm).

Até o momento, o Pentágono, contudo, mantém-se contrário a qualquer aventura que implique o risco de prolongar a zona de guerra, numa linha que iria do Litani ao Oxus, se os Guardas Revolucionários chegarem a operar no Líbano ou no oeste do Afeganistão. Nem se deve desconsiderar a ameaça que Teerã fez, de retaliar com mísseis convencionais contra cidades israelenses. E também é preciso considerar outros aliados de Washington. Israel e seus lobbyists devem ser os primeiros a se manifestar nos atuais movimentos contra o Irã, mas não estão sós.

A monarquia saudita, ditadura sui generis de fundamento religioso, ainda teme que uma combinação de Teerã e Bagdá possa desestabilizar a Península: os xiitas são grande maioria no Bahrain e na região produtora de petróleo do próprio Estado saudita. Mas os sauditas também sabem que qualquer ataque direto contra Teerã criará ameaça ainda maior contra seu próprio poder, se provocar levante dos xiitas, que os engolirão. Para Riad, é preferível uma via alternativa que está sendo estudada em Washington – que incluírá a Turquia na equação regional como destacamento sunita-OTAN do império, servindo como contrapeso aos petrodólares sauditas oferecidos à Síria para romper com o Irã. Seria um contrapeso-garantia contra qualquer futuro eixo Teerã-Bagdá e excluiria o Hezbollah libanà ªs, facilitando as coisas para outro ataque pelo Exército de Israel. [continua]

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NOTAS

[1] Discurso de Obama em Camp Lejeune, North Carolina, 27/2/2009.

[2] Cultural Cleansing in Iraq: Why Museums were Looted, Libraries Burned and Academics Murdered, editado por Raymond Baker, Shereen Ismael e Tareq Ismael, London 2009, oferece números detalhados e fontes; de 2003 a 2007, Washington só admitiu a entrada nos EUA de 463 refugiados, quase todos profissionais qualificados, de origem católica. Para boa história do petróleo iraquiano, com atenção ao processo de privatização em andamento, ver Kamil Mahdi, ‘Iraq’s Oil Law: Parsing the Fine Print’, World Policy Journal, verão 2007.

[3] Nas palavras de Economist: "Velhas práticas do tempo de Saddam Hussein estão de volta. A tortura é rotina nos centros de detenção (...). A polícia iraquiana e o pessoal da segurança votlaram a arrancar unhas e espancar detentos, mesmo os que já tenham confessado. Um ex-prisioneiro, que anda com dificuldade, como como percebeu, depois de uma sessão de cinco dias ininterruptos de tortura, que, relativamente, tivera muita sorte. Quando foi devolvido à cela com outros prisioneiros, viu que vários haviam perdido membros ou à ³rgãos. O aparelho doméstico de segurança está a pleno vapor, pela primeira vez desde que Saddam foi derrubado do poder há seis anos, sobretudo na capital. Em julho, a polícia de Bagdá reimpôs o toque de recolher noturno, facilitando o processo pelo qual a polícia, a mando dos políticos reinantes, pode prender sem testemunhas os que façam oposição ao governo Xiita.” Ver ‘Could a Police State Return?’, The Economist, 3/9/2009.

[4] O General Petraeus anunciou recentemente que o número de ataques contra postos militares dos EUA no Iraque haviam caído para ‘apenas’ 15 por dia (Financial Times, 2/1/2010). Quem representa os sentimentos da maioria dos iraquianos não é Maliki, mas Muntadhar al-Zaidi, o jornalista que atira sapatos em presidentes dos EUA, independente da origem étnica ou de religião.

[5] “A massagista Mila do Quirguistão viaja uma hora, de ônibus, dentro da área da base, para chegar ao seu salão de massagens. Seu salão é um dos três que opera nos 6.300 acres de área da base, localizado ao lado de uma loja de sanduíches Subway, cercada por paredes de aço, areia e rocha”, escreve Marc Santora em ‘Big US Bases Are Part of Iraq, but a World Apart’, New York Times, 8/9/2009.

[6] Em Illinois, em 2004, assisti a uma entrevista de Obama trasmitida pela televisão, ainda na campanha eleitoral para o Senado, em que foi eleito senador. O entrevistador perguntou se apoiaria o presidende Bush, se decidisse bombardear o Irã; o futuro presidente não hesitou nem um segundo: fez cara beligerante e disse que sim, apoiaria.

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