sábado, 13 de fevereiro de 2010

EUA: presidência e conversa mole (3)

Querem reinventar Cabul

Tariq Ali, New Left Review, n. 61, jan.-fev. 201; tradução: Caia Fittipaldi

Da Palestina passando pelo Iraque até o Irã, Obama agiu como mais um fiel servidor do império norte-americano, perseguindo os mesmos alvos que seus predecessores, pelos mesmos meios, embora com retórica mais emoliente. No Afeganistão, foi mais longe, ampliando a frente de agressão, com escalada na violência tecnológica e territorial.

Quando Obama tomou posse, o Afeganistão já estava ocupado pelos EUA e forças satélites, por mais de sete anos. Na campanha eleitoral, Obama – determinado a superar Bush naquela ‘guerra justa’ – pediu mais ataques com os aviões-robôs não tripulados para esmagar a resistência afegã; e mais invasões por terra, além da invasão pelos aviões-robôs no Paquistão para interromper de vez as linhas de apoio que vinham da fronteira. Aí está promessa bem cumprida.

Nesse momento, mais 30 mil soldados estão sendo mandados às pressas para o Hindu Kush. Com eles, o exército norte-americano de ocupação chegará aos 100 mil soldados, comandados por um general escolhido por Obama em razão do sucesso de suas brutalidades no Iraque, onde suas unidades formavam uma elite especializada em assassinatos e torturas. Simultaneamente, está a caminho uma massiva intensificação do terror aéreo sobre o Paquistão.

No que o New York Times delicadamente designou como “uma estatística que a Casa Branca não divulgou”, o jornal informou aos leitores que “desde a posse do presidente Obama, a CIA moveu mais ataques com aviões-robôs, os drones Predator, contra território paquistanês, do que ao longo dos oito anos de governo do presidente Bush”[1].




Não há mistério algum sobre a razão dessa escalada. Depois de invadir o Afeganistão em 2001, os EUA e seus auxiliares europeus impuseram lá um governo-fantoche inventado por eles mesmos, montado num encontro em Bonn, chefiado por um quadro da CIA e assessorado por um sortimento de senhores-da-guerra tadjiques, com uma coorte de ONGs que os cercam como pajens em corte medieval. Esse constructo-fantoche jamais gozou sequer de alguma mínima legitimidade local, nem aquela estreita mas legítima base com que contava o regime dos Talibã. Instalado em Cabul, os fantoches concentraram-se na exclusiva tarefa de enriquecer. Ajudas desencaminhadas e roubadas, corrupção generalizada, narcóticos – duramente reprimidos pelos Talibã – corriam soltos. Karzai e companhia acumularam fortuna imensa: mais de 75% de todos os fundos envia dos ao Afeganistão pelos países doadores acabaram diretamente dentro dos cofres do aliados de Karzai, da Aliança do Norte ou de empresários privados usados por eles como intermediários.

A construção de um novo hotel 5-estrelas e de um shopping center tornaram-se prioridades, em país que é um dos mais pobres do mundo; e os assassinatos e a tortura converteram em rotina a poucos passos do hotel e do shopping center; a base-prisão de Bagram converteu-se em câmara de horrores ante a qual Guantánamo pareceria civilizada. A produção de ópio alcançou números que jamais alcançara em todos os tempos, crescendo mais de 90% em relação aos níveis de 2001, quando estava confinada às regiões controladas pela Aliança do Norte; espalhou-se para sul e oeste, sob a batuta do clã Karzai. A massa dos afegãos mais pobres receberam pouco ou nada dos benefícios da nova ordem imposta, exceto maiores perigos e risco de morte mu ito mais alto, quando as forças reorganizadas dos neo-Talibã começaram a atacar os exércitos ocupantes, e bombas da OTAN começaram a chover sobre vilas e aldeias. A tal ponto que Karzai viu-se várias vezes obrigado a protestar.[2]

Em junho de 2009, os guerrilheiros afegãos controlavam vastas áreas do país e tinham vários agentes infiltrados na polícia e nas unidades militares oficiais. Adotando táticas de IEDs [ing. Improvised Explosive Device] desenvolvidas no Iraque para ataques em estradas e suicidas-bombas, estavam infligindo pesadas baixas na ocupação ocidental e seus colaboradores. No próprio campo imperial, crescia o desassossego e a confusão.[3]

Os funcionários norte-americanos, militares e diplomatas, contradiziam-se publicamente, sem qualquer acordo sobre até que ponto os EUA deveriam servir como avalistas da farsa de democracia que Karzai encenava como se fossem eleições; uns apoiavam, outros rejeitavam. Naquele evento, depois de veementes denúncias de fraude pelo primeiro mandatário dos EUA em Washington, e depois de manifestar-se favorável a um segundo turno de eleições, Obama consumou a farsa ao congratular-se publicamente com Karzai, por uma vitória mais visivelmente fraudada, até, que a de Ahmadinejad, dois meses antes; na ocasião, o presidente Obama não economizou palavras duras.

Diferente do regime em Teerã, que tem base social de legitimidade, diminuída hoje, mas ainda existente, o que se faz passar por governo em Cabul é um implante ocidental na Região, que se desintegrará da noite para o dia, no instante em que seja abandonado pela guarda pretoriana da OTAN que lá está para protegê-lo.

Pendurado em Islamabad, Paquistão

Desesperadamente necessitado de alguma vitória em sua ‘guerra justa’ escolhida, Obama lançou-se no clássico movimento de ‘fuga para adiante’, despachando força expedicionária ainda maior e estendendo a guerra também ao país vizinho, onde se suspeita que o inimigo encontre ‘paraísos seguros’. Desde o início de seu governo, já estava inventada uma nova zona ‘integrada’ de guerra, uma nova entidade formada de Paquistão e Afeganistão, mas rebatizada como “Af-Pak”. Uma torrente de emissários foram despachados para Islamabad para comandar o Estado paquistanês na direção das missões de repressão e violência que passavam a ser atribuição sua.[4]

Os 2.460 quilômetros de fronteira entre o Afeganistão e o que é hoje o Paquistão são limite muito poroso desde que o Império Britânico demarcou a Linha Durand, em 1893. 16 milhões de pashtuns vive no sul do Afeganistão, 28 milhões na Província Fronteira Noroeste, no Paquistão. É impossível policiar aquela fronteira, e praticamente não se vêem os deslocamentos nas duas direções, porque as várias tribos que por ali circulam falam o mesmo dialeto e muitas vezes já estão unidas em famílias comuns por casamentos intertribais, dos dois lados.

Os guerrilheiros afegãos

buscam e encontram abrigo em praticamente toda a região, o que não é segredo para ninguém. Para que a OTAN ou o Exército Paquistanês conseguissem deter esse fluxo, teriam de mobilizar no mínimo 250 mil soldados em campanhas de aniquilação semelhantes às de Chiang Kai-shek nos anos 30s. No governo de Musharraf – e sob as ameaças do Pentágono, de que se o Paquistão não concordar, será bombardeado até ser devolvido à Idade da Pedra –, o Exército Paquistanês converteu-se, de patrão em inimigo de morte dos Talibã no Afeganistão, mas sempre só nas camadas superficiais. O Exército Paquistanês sabe perfeitamente bem que está sendo obrigado a influenciar Cabul a favor da Índia... Índia a qual, por sua vez, não perdeu tempo e já pôs Karzai sob suas asas. Musharraf fez o máximo que pôde para satisfazer os E UA, permitindo que soldados das Forças Especiais e aviões-robôs teleguiados, os drones Predator, invadam sem qualquer restrição o Paquistão, e delatando todos os agentes da al-Qaeda de que teve notícia. Mas, de fato, Washington jamais engoliu completamente a ideia de que esse tipo de ‘segurança’ bastasse, o que, numa espécie de reação de desconfiança, faz com que, cada dia mais, aumente o desprezo que a maioria dos paquistaneses sentem por quem negocie com os EUA.

Quando Obama chegou ao poder, dois desenvolvimentos haviam alterado essa cena. Incessantemente empurrado pelo Pentágono, entre 2004 e 2006 Musharraf mandou o Exército Paquistanês nove vezes para as Áreas Tribais de Administração Federal [ing. Federally Administered Tribal Areas (FATA)], os sete setores montanhosos não incluídos na jurisdição da Província da Fronteira Noroeste – onde a autoridade do governo central sempre foi vestigial –, para deter a infiltração dos Talibã. Como resultado, só conseguiram estimular na população solidariedade cada vez maior e desejo sempre crescente de participar da resistência afegã.

Assim chegou-se a dezembro de 2007, com a formação da Tehrik-i-Taliban paquistanesa, guerrilha brutal e nativa dedicada a combater diretamente contra Islamabad e Musharraf. (Ao contrário do que supõe o ocidente, esse grupo não é subsidiário ou fruto dos neo-Talibã afegãos, como o comprova o levante de Mullah Omar contra o ocidente. Muito claramente, Omar insistia em que o alvo não seria o Exército Paquistanês; que o inimigo real sempre foram EUA e OTAN.)

Em 2008, o próprio Musharraf foi derrubado. Foi substituído na presidência pelo infame viúvo de Benazir Bhutto, Asif Zardari, escroque conhecido e desacreditado, que se ofereceu como espantalho a serviço dos EUA. A embaixadora dos EUA, Anne Patterson – recém desembarcada depois da missão de armar o governo Uribe na Colômbia – em pouco tempo já se servia da boa-vontade de Zardari. E os frutos não tardaram a brotar. Em abril de 2009, Zardari ordenou que o Exército ocupasse o distrito de Swat na Província da Fronteira Noroeste, que dois meses antes havia sido tomada pela brutal milícia Tehrik-i-Taliban Paquistanesa (TTP). Violento assalto com armamento militar pesado empurrou os guerrilheiros TTP de volta às montanhas e criou dois milhões de refugiados expulsos de suas casas e terras. Empolgado por esse impressionant e sucesso humanitário, Obama forçou Zardari a mandar o exército para a própria área tribal de administração federal, FATA, em outubro, para empurrar para o ralo os guerrilheiros Talibã – e já pouco importava que fossem afegãos ou paquistaneses, desde que fossem empurrados para o ralo – do Waziristão Sul e Bajaur.

Mais centenas de milhares de homens e mulheres e crianças das tribos daquelas regiões foram expulsos de suas casas e terras, com o ronco dos bombardeiros dos EUA explodindo sobre (literalmente) suas cabeças, enquanto corriam desesperados sem saber para onde ir.[5] Em novembro, o Exército do Paquistão anunciou “o fim da ofensiva”. A guerrilha aparentemente foi varrida da face da terra.

Até que ponto pode avançar esse tipo de limpeza étnica doméstica, e a que tipo de resultados levará, ainda não se sabe. O que já se sabe é que, ao forçar o Exército do Paquistão a atirar contra as tribos paquistanesas, com as quais o Exército e todos os militares sempre viveram em bons termos, Obama obra para desestabilizar mais uma sociedade, no interesse do império dos EUA. Hoje, os ataques por homens e mulheres-bombas estão convertidos em tragédias semanais nas grandes cidades do Paquistão – vãos e desesperados atos de vingança contra a repressão na região da fronteira. Zardari e sua trupe cambaleiam, depois que a imunidade que Musharraf lhe garantira, nas acusações de corrupção, foi derrubada na Suprema Corte do Paquistão. Há boa chance de que o PPP [ing. Pakis tan Peoples Party], partido já corroído pelos vermes, e desgraça que assola o país desde o segundo mandato de Benazir Bhutto, rache e desapareça depois do fim de Zardari[6].

Washington resistirá ao fim desse escroque e escroqueria, mas pode confiar plenamente nos generais estrelados do Exército para que lhe ofereçam substituto funcional à altura, como sempre aconteceu no passado. O Exército Paquistanês jamais produzir oficialato jovem patriótico capaz de eliminar o alto comando, expulsar as agências estrangeiras e impor reformas, como viu-se algumas vezes na América Latina e no mundo árabe. A subserviência do Exército do Paquistão aos EUA é estrutural, mesmo que nem sempre tenha sido total.

Dependente de massivos aportes de dinheiro e equipamento norte-americanos, o Exército do Paquistão não se atreve a desafiar Washington abertamente, mesmo quando obrigado a agir contra seus próprios interesses; muito encobertamente, sempre buscou manter alguma margem de autonomia, enquanto persiste a confrontação com a Índia. Arrasará seus próprios cidadãos, se os EUA assim ordenarem, sim; mas não a ponto de incendiar irremediavelmente as áreas tribais, nem colaborará até o final para extirpar toda a resistência nas áreas de fronteira. [Continua]

[1] David Sanger, ‘Obama Outlines a Vision of Might and Right’, New York Times, 11/12/2009.

[2] O protesto mais recente aconteceu dia 27/12, quando um unidade clandestina de militares dos EUA mataram dez civis; no mesmo dia, milícias de Ahmadinejad mataram cinco manifestantes em Teerã.

[3] Ver carta de Matthew Hoh, ex-capitão da Marinha dos EUA, que serviu como contato político no Iraque e, depois, no Afeganistão, e demitiu-se em setembro de 2009. “A insurgência pashtun, constituída de um número múltiplo, que parece infinito, de grupos locais, é alimentada por algo que o povo ressente como guerra continuada, infindável, eterna, e roubo já centenário de terra, cultura, religião e tradições pashtuns, por inimigos internos e externos (...). A leste e ao sul, observei que a maioria dos combatentes não lutam sob a bandeira branca dos Talibã, mas lutam contra a presença de exércitos estrangeiros em sua terra e contra impostos impostos por um governo em Cabul que eles não respeitam e não consideram representativo (...). Se fosse séria a nossa estratégia de garantir estabilidade no Afeganistão para evitar que a Al-Qaeda renasça ou se reorganiza, seria preciso que os EUA também invadissem e ocupassem o oeste do Paquistão, a Somália, o Sudão, o Iêmen etc.” Ver Ralph Nader, ‘Hoh’s Afeganistão Warning’, CounterPunch, 4/11/2009.

[4] A empresa Inter-Risk, subsidiária no Paquistão da gigante DynCorp, fornecedora do ministério da Defesa dos EUA, foi invadida pela Polícia local, que encontrou lá “armamento sofisticado e ilegal”. O presidente da empresa, capitão da reserva Ali Jaffar Zaidi, informou aos jornalistas que os funcionários dos EUA em Islamabad haviam ordenado a importação de armamento proibido “em nome da Inter-Risk”, sob promessa de que a encomenda seria paga pela embaixada dos EUA. Ver Anwar Abbasi, ‘Why the US security company was raided’ [Por que a empresa de segurança norte-america na foi invadida pela Polícia], The News, 20/11/2009.

[5] Para uma estimativa do número de refugiados das regiões de Swat e da FATA, ver Mark Schneider, ‘FATA 101: When the Shooting Stops’, Foreign Policy, 4/11/2009. Schneider é vice-presidente Sênior do impecável think tank pró-establishment “International Crisis Group”.

[6] O negócio montado pelos EUA, que permitiu a volta ao país de Zardari e sua falecida esposa ainda no governo de Musharraf foi feito mediante um acordo apressadamente costurado, chamado “Ordem da Reconciliação Nacional”, pelo qual vários políticos foram perdoados de vários crimes. Em novembro p.p., a Assembleia Nacional do Paquistão rejeitou, afinal, a renovação daquela “Ordem”. E a nova Corte de Justiça completou o serviço. Dia 16/12/ 2009, numa tarde gelada do inverno em Islamabad, a Suprema Corte de Justiça do Paquistão, por unanimidade – o p residente e todos os 16 ministros votantes – declararam nula e sem efeito, aquela “Ordem”. Ninguém duvida que o período Zardari está chegando ao fim. Esse importante e específico drone, robô-teleguiado de Washington poderá, afinal, retornar ao sossego de sua base, em Dubai ou Manhattan.

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