O blog dele, What's left, um dos melhores do mundo na minha humirde, é simplesmente imperdível. What's left é um nome dúbio em inglês, "trocadilhado", reduzido de What's left in suburbia, do qual só restam os arquivos. A descrição antiga: "Política progressista de e para a classe média canadense". Em 2002, a capa era um aviso gigantesco: "Se você entrou aqui entrou também para a lista negra do FBI, que monitora este site." Adorei e assino o mailing dele desde então. Esta foto é a única de Gowans na internet, pelo que pude achar, tirada de uma rara entrevista à TV.
Então, saboreiem o jeito Stephen Gowans de desmontar o NY Times, seu hobby favorito (o original de Scott Shane está aqui).
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Perigosamente perto da verdade sobre a política externa dos EUA
Stephen Gowans
Arte de Sara Rahbar: "God bless America Flag" |
Shane não chegou à conclusão óbvia, de que os Estados Unidos não são os campeões mundiais em democracia. Mas chegou perto.
Mencionou alguns dos exemplos mais flagrantes do apoio de Washington a ditadores: Batista em Cuba; Mahammed Reza Pahlavi no Irã; Ferdinand Marcos nas Filipinas (cuja "adesão aos princípios democráticos e ao processo democrático" o então vice-presidente dos EUA George H.W. Bush descaradamente elogiou). "A lista poderia ser estendida", Shane admitiu, "para pelo menos uma vintena de déspotas" apenas a partir da Segunda Guerra Mundial.
Raramente o New York Times reconhece a longa história de apoio dos Estados Unidos a ditadores, todos de direita e não poucos fascistas. Pelo contrário, o jornal reforça o discurso de que a política externa do país seja guiada pelos valores de disseminação da democracia. Talvez a mudança se dê porque não há mais como os Estados Unidos continuarem a apoiar seu paladino de três décadas no Egito, Hosni Mubarak - e a continuação do regime com seu herdeiro, Omar Suleiman - e ainda recorrer à retórica pró-democracia para justificar tal apoio (embora a fala da secretária de Estado Hillary Clinton sugerindo que Suleiman supervisione a transição à democracia seja uma tentativa).
Com a hipocrisia americana exposta, o New York Times teve de fazer uma concessão à verdade -- pelo menos parcial.
Shane admite que os EUA têm valores e interesses, e as circunstâncias muitas vezes conspiram para que os dois se cruzem. Mas isso é o máximo a que ele chega. Admitindo que os EUA têm "interesses" que não se alinhem sempre aos "valores" ele se aproxima perigosamente da verdade. Ok, mas quais são os interesses? R. Palme Dutt observou certa vez que a idéia de que os países têm interesses em outros países é uma abominação da geografia e da democracia. Como poderiam os EUA ter interesses no Egito?
Têm os egípcios interesses nos EUA que precisem ser reforçados com o envio de milhões de dólares a um ditador para manter os interesses dos cidadãos americanos subordinados a seus próprios? Se sim, os americanos deveriam chamar isso de imperialismo, em vez de ausência de valores ou interesses a alinhar. Se os egípcios dizem que realmente valorizam a democracia, mas outras considerações falam mais alto, os americanos deveriam responder que o compromisso do Egito com a democracia é retórico, as outras considerações é que realmente importam.
De acordo com Shane, Mubarak tem servido aos interesses dos EUA como "um forte aliado contra o expansionismo soviético", mantendo "paz crítica com Israel", como "um baluarte contra o radicalismo islâmico" e na promoção de "um Egito comercial e turístico amigável". Mark Landler, colega de Shane no Times, resume desta forma: o regime de Mubarak defende os interesses estratégicos e comerciais dos EUA.
Os interesses comerciais são, naturalmente, os interesses comerciais e, mais especificamente, os interesses das grandes corporações. Não representam em muitos casos nem direta nem indiretamente os interesses da maioria dos cidadãos americanos. Um callcenter montado no Egito por empresa dos EUA, para tirar proveito dos baixos salários, favorece os ricos acionistas da empresa, e muitos deles nem americanos são, pressiona os salários nos EUA e exporta empregos.
Em outras palavras, os interesses comerciais que Mubarak e outros autocratas apoiados pelos EUA em nome da proteção dos interesses dos Estados Unidos não são os interesses da maioria dos cidadãos americanos, mas de um estrato superior de investidores, banqueiros e acionistas abastados cuja única lealdade é com seu próprio rabo. Os interesses dos americanos médios dificilmente importam. De fato, em muitos casos, seus interesses são diametralmente opostos.
E quem está pagando a conta dos bilhões de dólares em ajuda militar ao regime de Mubarak? É o americano médio, não os beneficiários diretos da política externa dos EUA.
É pior. Os idealizadores da política externa dos EUA não se opunham ao que chamavam de "expansionismo soviético" porque valorizavam a "democracia", mas porque valorizavam a exploração quase ilimitada do trabalho, que a expansão da influência soviética impedia. O problema com o radicalismo islâmico não é porque ele ofenda os valores ocidentais (mesmo que até ofenda), mas porque inspira regimes que colocam os interesses nacionais acima das companhias de petróleo dos EUA. A paz entre o mundo árabe e Israel é desejável porque Israel é encarregada por Washington de atuar como agente preventivo de um pan-nacionalismo árabe que poderia levar os países ricos em petróleo a refugar ante o domínio dos interesses petrolíferos americanos.
Então, que valores dos EUA? Querem que acreditemos que os idealizadores da política externa americana valorizam a democracia liberal, mesmo que os interesses no lucro venham antes. Mas se quando colidem os grandes interesses empresariais prevalecem sobre a democracia liberal, o que Washington realmente valoriza -- se valor tiver aqui algum significado -- é o lucro.
Assim: digo que valorizo a literatura de valor, mas ponho os livros de lado quando alguém liga a TV. E nunca perco um episódio de Cribs. Assim, onde estão meus valores realmente?
O abraço à democracia liberal apenas onde não entre em conflito com a busca do lucro aplica-se igualmente à esfera doméstica. Atesta isso a presteza dos governantes americanos em jogar no lixo as liberdades civis nos anos do "Perigo Vermelho" após a Revolução Bolchevique -- quando os capitalistas se encolheram diante da idéia da revolução socialista se espalhando pelo mundo.
Quanto à democracia que Washington está disposta a abraçar, parece boa no papel, mas é curta na prática. A democracia de Washington não é a democracia em seu sentido original, como a de uma classe anteriormente oprimida (a maioria), mas a democracia da classe dominante, os ricos capitalistas. Secretários de gabinete e editorialistas exaltam essa democracia que parece proporcionar oportunidades iguais a todos para influenciar o processo político, mas a realidade é que os ricos usam o dinheiro para dominar o processo por meio do lobby, do financiamento dos partidos políticos e candidatos, da propriedade dos meios de comunicação e o posicionamento de seus representantes em cargos-chave no Estado.
Quantos funcionários do governo Obama tinham cargos importantes em empresas e a eles retornarão quando sua estada em Washington terminar, substituídos por outros luminares corporativos que viajam nos mesmos círculos, sentam-se nas mesmas mesas diretoras, cujos filhos vão às mesmas escolas e se casam entre si? A arte da política na democracia capitalista, parafraseando um político-chave do Partido Trabalhista do passado, é permitir que os ricos nos convençam a usar nossos votos para mantê-los no poder.
Democracia, portanto, não é um valor central nos EUA -- e não é por duas razões. Primeiro, a democracia que Washington abraça não é democracia em nenhum sentido substancial, é antes uma plutocracia com pompa democrática. Por outro lado, o real valor central dos EUA é o lucro. Mesmo essa democracia dos ricos é posta de lado quando, por qualquer motivo, os interesses do big business não possam ser acomodados adequadamente -- isto é, sempre que alguma expressão da democracia real ameace romper as limitações do sistema.
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